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Prece de Natal

Extraído da edição 109
Artigo publicado em A Imprensa (1898), reproduzido
na histórica revista Boa Vontade no 6, de dezembro de 1956.

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Mistério divino, em cujo seio, há mil e novecentos anos, se desenvolve a civilização humana, perdoa aos que deste lugar de fraquezas e paixões ousam esflorar com o pensamento a tua pureza. Os moldes da única eloquência capaz de te não profanar quebraram-se com a última inspiração dos teus livros sagrados. Desde então, de cada vez que o homem se desengana do homem, e a alma precisa do ideal eterno, na melancolia das épocas agitadas e tenebrosas, diante da injustiça, ou da dúvida, da opressão, ou da miséria, é no cristal das tuas fontes que se vai saciar a nossa sede. Deixaste-as abertas na rocha da tua verdade, e há dezenove séculos que borbotam, com o mesmo frescor sempre das primeiras lágrimas daquela, cuja maternidade virginal desabotoava hoje na flor da redenção cristã.

Tamanha é a tua grandeza, que excede todas as do universo e da razão: o espaço, o tempo, o infinito, acima dos quais a cruz da tua tragédia espantosa parece maior que os voos da metafísica, as imensidades do cálculo e as hipóteses do sonho. Daí a palavra e a imaginação recuam assombradas, balbuciando. A criatura sente o teu amor, mas tremendo. Vê-se alvorecer a eternidade na magnificência de um abismo que se rasga no céu; mas nas suas arestas alguma coisa há de sombra e ameaça. De onde, porém, tu penetras no coração de todos com a doçura de uma carícia universal, é daquele presepe, onde a tua bondade nos amanheceu um dia no sorriso de uma criança.

Enquanto César cuidava do império, e Roma do mundo, assomavas tu ao canto de uma província e na vileza de um estábulo, sem que Roma, nem o império, nem César te percebessem, para ficar à posteridade a lição indelével de que a política ignora sempre os seus mais formidáveis interesses. Tiveste por berço as palhas de um curral. A última das mães sentir-se-ia humilhada, se houvesse de reclinar o fruto do seu regaço no sítio abjeto, onde recebeste os primeiros carinhos da tua. Mas a manjedoira, onde soabriste os olhos à primeira luz, recende até hoje o perfume da mais esquisita poe­sia, e o dia do teu natal fez-se para a cristandade o mais formoso dia da terra, o dia azulado e cor-
-de-rosa entre todos como o céu da manhã e o rosto das crianças.

Elas, de geração em geração, ficaram sabendo para todo sempre a história do teu nascimento. E nessas festas do seu contentamento e da sua inocência tendes, ó Deus dos mansos e dos fracos, dos humildes e dos pequeninos, a parte mais límpida do teu culto, o raio mais meigo da tua influência benfazeja. Esses ritos infantis estrelam de alegria as neves polares, orvalham de suave umidade os fulgores tropicais, estendem o firmamento debaixo dos nossos tetos, e dentro do nosso espírito mortificado, inquieto, triste, põe uma hora de alvorada feliz.

Cristo, como te sentimos bom quando te vemos entre as crianças, e quando as crianças te encontram entre si. Despindo a tua majestade toda, para caberes num seio de mulher e no tamanho de um pequenito, assentaste sobre as almas um império sutil e irresistível, por onde a espontaneidade da nossa adoração continuamente se renova e embalsama nas origens da vida. Todos aqueles, pais, irmãos, ou benfeitores, a quem concedeste a bênção de amar um menino, e o têm nos braços, ou o perderam, veem nele a tua imagem, a cópia, idealizada pela fé e pelo amor, do eterno tipo do belo. Divinizando a infância, nascendo e florescendo como ela, deixaste à espécie humana a reminiscência mais amável e celeste da tua misericórdia para conosco.

De cada casa, onde permitiste que gorjeie e pipile esta manhã um desses ninhos tecidos pela providência das mães no meio das nossas agonias, se estão exalando para ti as súplicas e os hinos do nosso alvoroço. Por essas criaturinhas, Senhor, é que o nosso espírito se peja de cuidados, e a nossa previsão, agora mesmo, enoiteceria de agoiros funestos, se te não víssemos de permeio entre elas e o futuro carregado e temeroso. Deus benigno e piedoso, que em cada uma delas nos deixaste a miniatura da tua face desnublada, poupa-as à expiação das nossas culpas. Multiplica os nossos sofrimentos em desconto dos seus. Doira-lhes o porvir de teu riso compassivo. Cura a nossa pátria da aridez de alma, que a mata, semean­do a tua semente nesta geração que desponta. Permite, enfim, que nossos filhos possam celebrar com os seus em dias mais ditosos a alegria do teu natal.

 

A universalidade do sentimento cristão, destacado por Rui Barbosa, já se manifesta na Arte, representando o carinho e o respeito dos povos pelo Divino Crucificado.

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